O que um pássaro visitante e a chikungunya me ensinam sobre desapego

Um dia desses, um pássaro de peito amarelo e que caberia na palma da minha mão desdenhou a goiabeira no quintal, entrou pela janela e se embrenhou na luminária de cipó, onde decidiu construir um ninho –bem no meio da sala. Graveto por graveto, entrelaçando técnica e paciência, deu forma a um abrigo engenhoso –que acredito ter sido concluído ontem, com o ritual de acasalamento que testemunhei.

Aprendemos muito com a natureza. Se temos a mesma origem e até intercambiamos átomos e moléculas, por que não compartilhar também aprendizado? Acompanhar a construção do ninho foi uma lição de “abhyasa” e “vairagya”: prática constante e desapego; empenho e entrega, entre as traduções possíveis. Quando caminham (ou voam) juntos e equilibrados, esses dois princípios da ioga facilitam a jornada.

Meu hóspede começa seu trabalho logo cedo: chega trazendo no bico um graveto, encaixa na luminária, e voa em busca de mais matéria-prima. Volta com outro graveto. E depois outro. Um a um. Todos os dias. Um olhar apressado não perceberia muita mudança, mas quem acompanha com cuidado vê uma transformação em curso –possível porque, apesar de simples, a prática é constante. Isso é “abhyasa”.

Nem todos os gravetos foram encaixados de primeira. Alguns eram muito grandes e não couberam na luminária. Outros simplesmente caíram do bico antes de chegar. Parte dos gravetos perdidos no caminho o pássaro conseguiu recuperar. Mas tantos outros ele simplesmente deixou pra lá (o chão da sala que o diga). Desapegou-se, aceitou e não deixou que as perdas lhe distraíssem do foco no seu objetivo. Isso é “vairagya”.

EMPENHO CONSTANTE

Há um mês, comecei a sentir os sintomas da chikungunya, virose que causa dores nas principais articulações do corpo. Acostumada com a rotina cheia e o corpo ativo, eu me senti frustrada ao ter que me afastar do trabalho por, no mínimo, um mês. Também me senti triste por me ver temporariamente sem autonomia pra fazer tarefas básicas do dia a dia, como preparar minha própria refeição. E ansiosa por não saber quanto tempo exatamente aquela situação poderia durar.

Mas assim como o pássaro-iogue, tento trazer “abhyasa” e “vairagya” pra rotina. Nem sempre é fácil, mas sempre é possível tentar em algum grau. E acredito que graças a esses princípios tenho conseguido lidar melhor com o desafio das dores e manter a serenidade na maior parte do tempo –graças também ao apoio da minha família, amigos e alunos, a todos me sinto muito grata.

Tenho então me dedicado com empenho para minha recuperação: acompanhamento médico, repouso, alimentação e rotina orientadas pela minha terapeuta ayurvédica e tempo suficiente para me conectar com o ritmo do meu corpo, respirar com consciência e simplesmente estar presente comigo mesma mesma. “Abhyasa” está por aqui.

ABERTURA AO INESPERADO

Mas a ioga nos recomenda que o empenho venha acompanhado de desprendimento e abertura para que resultados diferentes dos que buscamos possam acontecer. Quando desejamos algo, acreditamos que aquilo é o melhor para nós, mas isso acontece com base nas nossas experiências, que são limitadas. Nem sempre nos damos conta de que resultados que não esperávamos podem ser uma janela para novas possibilidades tão interessantes que nem imaginávamos que existiam, por isso não havíamos buscado.

Quem não conhece uma história de alguma situação desagradável que abriu novas oportunidades? Uma demissão que permitiu a alguém encontrar um trabalho que tem mais a ver consigo mesmo; uma separação difícil que abriu caminho para um novo relacionamento incrível; a morte de uma pessoa querida que nos fez aproveitar melhor o tempo com os que estão vivos; um acidente que nos fez repensar tantas coisas.

Até agora, as dores me deram oportunidade de me conhecer melhor em situações de abalo físico e emocional, dedicar mais tempo ao autocuidado, ter uma ideia do que é a força que independe do meu corpo físico, observar minhas relações por outras perspectivas e experimentar novas abordagens para a prática de ioga. Apesar de ainda ter articulações doloridas, eu me sinto bem e hoje começo a voltar ao trabalho. Sei que o caminho da recuperação continua e quero estar aberta para que “vairagya” continue por aqui.

Com tudo isso, não quero dizer que é errado nos sentirmos inseguros diante do desconhecido ou frustrados quando as coisas não saem como queremos. Mas aceitar a diversidade do universo, ver a beleza no desconhecido e lembrar que o inesperado também traz novas oportunidades nos deixa mais tranquilos para que possamos seguir em frente com leveza e satisfação, em vez de empacarmos com o graveto que cai antes de chegar no ninho.