Recolhimento e desapego combatem ressaca eleitoral, diz terapeuta
Enquanto parte da sociedade brasileira procura formas de lidar com sentimentos como tristeza, medo e desânimo relacionados à recente eleição presidencial, como mostrou o blog namastê, o terapeuta e pesquisador da psicologia do ioga Jorge Luís Knak, 46, avalia que os sintomas do estresse eleitoral atingem os dois lados da disputa.
“A ressaca eleitoral está presente para todos os que têm consciência do valor da vida e para todos que têm consciência da própria ignorância. Também está presente para quem tem raiva do ‘inimigo’ e para quem tem medo”, disse em entrevista ao blog. “Tanto a vitória quanto a derrota geram ressaca, pois ambas são temporárias, ambas frustram mais cedo ou mais tarde.”
Professor de ioga há 24 anos, discípulo do mestre indiano T.K.V. Desikachar (1938-2016), funcionário público e pai de três filhos, Knak também realizada atendimentos individualizados em Porto Alegre e percebeu que o estresse causado pela acirrada disputa eleitoral virou assunto recorrente entre seus pacientes.
Para o professor e terapeuta, habilidades mentais como leveza, desapego, concentração e clareza são essenciais para quem deseja sair do ciclo de sofrimento causado, entre outros fatores, pela incapacidade de compreendermos que “cada mente cria sua própria filosofia”, conforme ditado indiano.
Knak também afirma que a busca da espiritualidade e o caminho de ioga não são incompatíveis com o engajamento social –“não há como praticar ioga com alienação”–, mas considera que, às vezes, um “cuidadoso jejum temporário” do embate político pode ser necessário para preservar o corpo e a mente saudáveis.
Segundo o professor, contentarmo-nos com o que está a nosso alcance também deve ser parte do processo. “Não é negado o fato de que devemos agir em busca da conquista daquilo que consideramos ser mais benéfico a todos, mas o resultado está fora de nosso controle.”
Leia a seguir a íntegra da entrevista.
Namastê: Acabamos de passar por uma das eleições mais polarizadas no país desde a redemocratização e temos visto uma forte divisão da sociedade, com muitas pessoas expressando medo, tristeza e desânimo. Como podemos entender esse momento do ponto de vista do ioga?
Jorge Luís Knak: Fico feliz de tratar desse tema, pois é justamente no confronto de ideias que se dá o caminho de ioga. O que quero dizer por confronto? O embate que coloca de um lado minhas expectativas, meus ideais, meu desejos, ou seja, meu mundo interno, e de outro lado a realidade externa. É fácil entender que esse embate não tem fim, pois jamais a minha realidade individual estará plenamente alinhada com a realidade plural. Na Índia é dito que “cada mente cria sua própria filosofia”, pois essa é a trajetória humana, encontrar-se através da diferenciação. Porém, essa trajetória traz seus desafios.
Que tipo de desafios?
O ioga diz que nosso ego tem, entre suas vulnerabilidades, o orgulho e a necessidade de se afirmar no ambiente que o cerca. Para nutrir essas vulnerabilidades, faz negociações arriscadas. A segunda [necessidade de afirmação] pode gerar uma certa proteção quando o ambiente está saudável, mas irá gerar grandes danos quando o ambiente está doente. Como somos humanos, não ficaremos imunes a tais armadilhas. O ser humano nasce da ignorância, da confusão a respeito de sua verdadeira identidade, e o medo e o sofrimento são as inevitáveis consequências dessa incerteza. Tateamos no escuro em busca de algo em que possamos nos agarrar. Mas aceitar nossa ignorância e nosso medo é a primeira etapa da cura, assumir que estamos em busca e que todos nós estamos na mesma condição interna é essencial para o sentimento de irmandade.
Ou seja, é preciso entender que, por mais que eu discorde do outro, ele é movido por uma lógica interna que pode estar além da minha compreensão…
No ioga, o sentimento de irmandade é tanto a base de uma sociedade madura quanto a base para o autoconhecimento. O desejo da experiência de irmandade é natural em todos nós e é intenso, eis a razão de nossa angústia e violência quando o mesmo não se estabelece. Sabemos que a intensidade da reação equivale à intensidade do desejo. Mas, se não somos educados para essa percepção, somos enganados pela emoção mais aparente. E, como nosso sistema educacional é um fracasso nessa área, padecemos desse mal. Desejamos comunhão e não temos nem sequer consciência e clareza disso. Essa comunhão é um dos principais temas tratados em atendimentos terapêuticos na psicologia do ioga. A maneira como essa comunhão se apresenta em forma de ações está conectada ao conceito de “dharma”, que pode ser entendido como “ação saudável para aquele que a realiza e para o ambiente que a recebe”. É a dimensão social do sistema de ioga.
Os textos clássicos de ioga nos lembram que nem tudo está sob nosso controle. Como compreender isso pode ajudar a lidar com a “ressaca eleitoral”?
A ressaca eleitoral está presente para todos os que têm consciência do valor da vida e para todos que têm consciência da própria ignorância. A ressaca eleitoral também está presente para quem tem raiva do “inimigo” e para quem tem medo. Há muitas razões possíveis. Somos ignorantes em busca de clareza, peregrinamos pela riqueza da vida em busca de nós mesmos. Mas lembremos que tanto a vitória quanto a derrota geram ressaca, pois ambas são temporárias, ambas frustram mais cedo ou mais tarde. Nada se sustenta, a vida nos alerta para isso sempre. E, ainda assim, uma mente saudável deseja a felicidade de todos, se preocupa e se ocupa com esse propósito. Uma mente saudável tenta formular meios para que isso se concretize em algum grau e, ao formular meios, ela recorre às suas crenças, às suas marcas, à sua história… e, por isso, se diferencia. É possível que, saudavelmente, por enxergarmos diferentes meios, discordemos. Assim como é possível que discordemos por um ou mais dos envolvidos não estarem com a mente focada no “dharma”. Quanto mais alcançarmos sabedoria e saúde, mais olharemos para além de nós mesmos, quanto a isso não há dúvida. E, quanto ao imponderável, dependemos dele para crescer, dependemos dele para enxergar o que nossos olhos não buscariam. Sem as surpresas, sem a diversidade, sem as boas e sem as más notícias, não descobriríamos todas as riquezas da vida, pois nos moveríamos apenas pelos velhos caminhos protegidos e conhecidos. Que possamos confiar e aprender com todas as circunstâncias que se apresentam, sempre.
Para muitas pessoas, a dificuldade de lidar com essas discordâncias se manifesta na forma de estresse, como alterações no sono ou no apetite, dificuldade de concentração e irritabilidade. Que recomendações você daria a elas?
Esses sintomas mais superficiais já podem começar a ser tratados com exercícios de conexão corpo-respiração. Exercícios muito acessíveis onde vinculamos movimentos físicos a respirações cada vez mais macias e sensíveis já oferecem uma redução inicial relatada como bastante significativa pelos praticantes, desde que feitos diariamente e com a ajuda de um profissional que saiba adaptar e respeitar as características pessoais. Mas é minha responsabilidade alertar que um real caminho de ioga trata da mente humana, individualmente, e não apenas do corpo e da respiração.
Ouvi depoimentos de pessoas que, para preservar a saúde, estão se afastando do debate político, lendo menos notícias, saindo das redes sociais ou procurando atividades novas. Mas outras, mesmo em situação de estresse, continuam participando dos embates por considerarem um dever social. Como saber se é hora de recolhimento para cuidar de si?
A questão social e política é uma das dimensões de todo ser humano, assim como o corpo físico. E assim como não é uma opção deixar o corpo sem o devido alimento, não é uma opção abandonar a primeira. Mas, algumas vezes, é saudável um cuidadoso jejum temporário para que o corpo se recupere de excessos.
Existe um estereótipo de que o praticante de ioga deve se manter indiferente ao debate político para preservar uma mente tranquila. Por outro lado, a atuação pelo bem-estar da sociedade é um dos pilares do karma ioga. Como conciliar esses entendimentos?
Essa indiferença não é parte da verdadeira tradição da Índia. Surge da interpretação apressada e descuidada das escrituras. O ioga trata de forma magnífica a união entre isolamento e relacionamento. Ioga é, se formos rigorosos, isolamento, pois trata do reconhecimento de mim mesmo enquanto sujeito último. Estabelecer-se nesse reconhecimento é ioga. Porém, a vida que nos é dada é a peregrinação desse sujeito. É através dela que descubro meus próprios obstáculos e acabo por reconhecer que meus enganos viam lá fora as fontes de sofrimento, enquanto, na realidade, era a desconexão comigo mesmo que gerava tal experiência. E, em termos de corpo e mente, somos todos feitos da mesma matéria, temos a mesma estrutura básica, sofremos e nos alegramos pelas mesmas razões. O mundo é nosso espelho. O mundo é um benevolente e compassivo professor. Não há como descobrir a si mesmo sem peregrinar no mundo com os sentidos e com a mente curiosa e desperta. Nosso corpo e mente não podem ser separados do mundo que os cerca. Somos filhos da natureza e não de nossos pais, se olharmos mais profundamente. Nossos pais merecem nossa gratidão e respeito por tudo o que fizeram, por terem se sacrificado para nos manter vivos e acolhidos. À natureza devemos tudo, ela é nosso pai e nossa mãe no sentido mais amplo da palavra. Não há como se afastar da natureza um segundo sequer, mantemos uma ligação umbilical contínua, de corpo e mente. A “Bhagavad Gita”, um dos grandes textos de ioga, diz que nossa ação deve ser sempre como uma oferenda.
É o que também chamamos de ioga fora do tapetinho…
Karma é ação. Karma ioga é a ação em ioga. Karma ioga é um dos preciosos ensinamentos da “Gita” e nos remete a essa ideia de que agimos para nutrir aquela que nos dá a vida. É um ciclo interdependente. Isso é oferenda. Assim deveria se formar a sociedade, temos muito o que caminhar. O maior método de amadurecimento da mente e desenvolvimento de qualidade mental é karma ioga, sim. Exercícios físicos sensíveis são ótimos meios de pacificação mental, mas precisam, definitivamente, do forte alicerce de karma ioga. O último é o que chamamos de prática cotidiana ou informal, o primeiro (ásanas ou exercícios físicos e respiratórios) é o que chamamos de prática formal. Um depende do outro, um alimenta o outro. Portanto, não há como praticar ioga com alienação. Alienação é uma ausência de reconhecimento da comunhão a que me refiro. Alienação é a negação do que chamamos de “dharma”, conforme expliquei.
Neste momento pós-eleição, a preocupação quanto ao futuro do país gera certa ansiedade em muitas pessoas. Trazer a atenção para o momento presente ajuda a lidar com isso?
Não é negado o fato de que devemos agir em busca da conquista daquilo que consideramos ser mais benéfico a todos, mas o resultado está fora de nosso controle. O mundo nos traz eventos que vêm e vão, tanto eventos agradáveis quanto desagradáveis, mas nossas emoções se fixam a eles e acabam por causar, assim, a experiência de frustração e medo constante. Mas, para sairmos desse ciclo, precisamos desenvolver gradualmente qualidades mentais como leveza, desapego, concentração e clareza. Contentarmo-nos com o que está ao nosso alcance é uma sabedoria importante aqui. A mente eterniza o sofrimento que, por natureza, é temporário. Quando olhamos para a nossa mente neste exato momento, vemos o quanto ela facilmente é tomada pelas reais causas da eternização do sofrimento, a raiva, o desejo e a confusão. Estamos longe da desejada clareza. Temos muito trabalho a fazer com as nossas emoções neste exato momento. Assim é comigo, assim é com meus filhos, assim é com todos nós. Quanto mais me descuido disso, mais sou tomado pelas memórias de fatos passados e por inseguranças quanto ao futuro. Nosso maior inimigo é a mente, nosso maior amigo é a mente. Somos nós que escolhemos em qual das duas categorias ela passará mais tempo. Mas essa escolha não é teórica, há um caminho a ser trilhado, há passos específicos nos caminhos tradicionais de autoconhecimento. No caminho da mente posso confiar, já a trajetória do mundo externo está além de meu controle. Na “Bhagavad Gita”, é dito que o tempo parou para que o conhecimento fosse transmitido. Assim é. O conhecimento sobre mim mesmo está além dos eventos, não pertence ao tempo, pois eu estou aqui e não lá. O que precisa ser reconhecido, o que alavanca e o que eterniza a experiência de sofrimento está aqui no momento presente. Eventos vêm e vão, não se sustentam. Mas eu só posso me conhecer agora. E, se eu me conheço, terei reais condições de oferecer o que tenho de melhor aos que me cercam em todos os tempos.
E como conseguir focar no presente?
Começar acalmando o corpo e a respiração através dos chamados ásanas (exercícios físicos e respiratórios) é um ótimo remédio. Porém, lembremo-nos de que não há necessidade de habilidades físicas especiais para isso, o segredo é o desenvolvimento de simplicidade e sensibilidade. O corpo é nossa maior âncora para o presente, pois é o que há de mais estável em nossa experiência de vida. É ele o ambiente onde mora nossa mente. Se o corpo está sendo cuidado com sensibilidade e está sendo nutrido de forma saudável ele se torna um ambiente agradável, um bom lar. Ele é o lar que nos acompanhará por toda essa vida, só nos abandonará na morte. Não há parceiro mais fiel. Portanto, nada mais justo que retribuir a ele essa fidelidade tratando-o com respeito e gratidão. Precisamos reconhecer o que nutre nosso corpo, não só no sentido de alimentação. Seremos recompensados por isso. Além disso, há outras formas de desenvolver a concentração para aliviar o funcionamento dessas marcas mentais residuais. Fazer, por exemplo, uma longa e atenta sequência de orações escolhidas com sabedoria acalma padrões automáticos de pensamentos descontrolados que são pouco percebidos por nós e que influenciam nossas relações. O segredo é a regularidade dessa prática e a sustentação por longo prazo, pois as velhas marcas mentais automáticas enfraquecem, de fato, quando as novas marcas escolhidas se tornam mais fortes que elas.
E para quem não tem religião, qual o papel das orações?
Nossa cultura relaciona a oração com religiosidade, mas podemos entendê-la de uma forma mais abrangente. A oração no ioga está dentro do conceito de meditação. E meditação não segue, necessariamente, um enfoque religioso. Por exemplo, eu mesmo escrevo orações para pacientes usarem em suas meditações. Essas orações são, na maioria das vezes, palavras que remetem a uma mudança de estado mental. A oração é uma forma de invocar aquilo que valorizamos e que temos dificuldade de internalizar ou de expressar. Alguém que sofre com a incapacidade de manifestar seu amor aos filhos, por exemplo, pode orar com palavras que remetam a essa experiência emocional. A palavra é relacionamento. A palavra nasce da mente, mas é, também, capaz de conduzir a mente quando usada de maneira consciente como prática meditativa regular.