Moradores de rua e de apartamento se encontram em aulas de ioga

O cheiro do incenso aceso no meio da roda contrasta com o barulho dos carros que circulam a praça Paris, na região central do Rio de Janeiro. São quase 10h da manhã. “Numa hora dessas, você já me encontrava chapada. Ioga me afastou disso, saio daqui tão leve que não preciso ir atrás de cachaça”, conta a ex-moradora de rua Janaína Silva, 52, que há oito meses começou a frequentar as aulas do Yoga de Rua.

A prática voltada para moradores de rua começou há quase três anos, em novembro de 2015, quando o economista e professor André Pereira, 39, decidiu ampliar um projeto que oferece café da manhã nas ruas do Rio de Janeiro. “Ter uma filha me fez intensificar a responsabilidade de mudar o mundo. Achei que [o café] era pouco e queria oferecer algo mais”, relembra. A ideia tomou corpo e hoje as aulas gratuitas acontecem às segundas no aterro do Flamengo, às quartas no parque Eduardo Guinle (Laranjeiras) e às quintas na praça Paris (Glória), sempre das 10h às 12h.

Desde que descobriu a ioga, Janaína tenta convencer os amigos das calçadas a participarem das aulas. “Por onde passo, arrasto um. Na rua você não descansa, dorme com um olho aberto e o outro fechado, mas aqui a gente pode relaxar. É divertido e não olham pra gente com desprezo.” Na quinta-feira (18), quem foi “arrastado” por ela para uma primeira aula foi Carlos Nogueira, 64, o Pintinho –apelido inspirado no black power do ex-jogador do Fluminense. Ele quer ver se a ioga pode ajudar a controlar o hábito de beber. “Tenho muitos amigos que não estão mais bebendo. Eu não quero parar totalmente, só diminuir. Bebo socialmente, todo dia”, disse ele.

Yoga de Rua
Moradores de rua fazem aula de ioga no aterro no Flamengo, zona sul do Rio (Foto: Lorena Mossa)

A aula começa com um exercício respiratório para focar a mente. “O mundo em que a gente vive nos chama muito pra fora. Agora é a nossa oportunidade de olharmos pra dentro. Este é o momento presente, o momento mais importante da sua vida. Se eu só olho pra fora, não sei como estou”, orienta a professora e psicoterapeuta Eliane Rogério, voluntária do Yoga de Rua. Na roda, 17 alunos acompanham atentos cada instrução, como a da clássica postura do guerreiro, Virabhadrasana. “Esta é a postura mais importante do momento atual para quem está na rua ou fora da rua. É uma batalha do mesmo jeito. A gente precisa dessa força do guerreiro”, recomenda a mestra.

Um exemplo de guerreiro da vida real está na roda: Maurício Araújo, 34, o Gauchinho. Ele saiu de Gramado (RS) e caminhou pela estrada por sete meses até chegar ao Rio. A empreitada foi um ponto de virada para o cozinheiro, que de casa própria e trabalho estável passou para as ruas e a dependência das drogas depois de ver a morte da mãe e de dois irmãos, enfrentar um divórcio e ter quatro tentativas de suicídio fracassadas. Agora, ele diz que a ioga o ajuda a se manter longe das drogas. “Tchê, eu estou na rua porque deixei essas coisas me dominarem. Mas não tenho mais a tristeza, a raiva e a dor que tinha dentro de mim. Mesmo com as dificuldades da rua, de passar frio e fome, eu me divirto e sou uma pessoa feliz. Às vezes até esqueço: ‘o que era mesmo que tinha acontecido comigo?'”

Yoga de Rua
Alunos fazem postura de ioga “Baddha Konasana” durante aula gratuita no Rio (Foto: Lorena Mossa)

A aula na praça segue alternando movimentos de expansão e recolhimento, torção, flexão, estica daqui e puxa dali. “Lembrem que essa abertura do peito é essencial. Em entrevista de emprego, ninguém quer contratar quem já chega todo encolhido.” Depois do relaxamento, o grupo conversa sobre temas ligados à filosofia da ioga. “Nem todo mundo nasceu em berço de ouro, nem todo mundo recebeu amor. Como a gente pode agir dando nosso melhor, apesar disso? Com essas posturas, estamos treinando o corpo e a mente para nos fortalecermos e termos controle sobre nós mesmos. Porque tudo que a gente faz tem uma consequência”, ensina a voluntária Fernanda Bigaton, 31, enquanto o almoço vegetariano começa a ser servido.

Uma das alunas mais assíduas entendeu o recado: “Na rua, a gente é muito julgada e criticada. Só que a gente tem que aprender a não devolver isso de forma negativa. É tão difícil”, compartilha Sabrina Princes, 37, transexual e moradora de rua. Nascida em Curitiba, ela chegou ao Rio em 2012, na carava de um circo onde trabalhava. Quando o circo fechou, decidiu continuar na cidade para não ter que conviver com o preconceito da própria família.

“Fiquei vivendo de bicos, mas um dia não tive mais condições de pagar o aluguel. Hoje eu durmo na pista, porque no abrigo tem hora pra entrar e pra sair, e tem dias que eu preciso ir pra noite, então acabo ficando do lado de fora. Eu ia preferir se não precisasse disso, mas aqui no Rio tudo é muito caro”, desabafa. “Comecei a frequentar as bocas de rango (projetos que oferecem refeições), e nisso conheci a ioga. O carinho deles nos acolhe.” Outros relatos foram reunidos pelo grupo neste vídeo.

Yoga de Rua
Alunos fazem postura do Guerreiro 3 durante aula do Yoga de Rua, no Rio (Foto: Lorena Mossa)

Atualmente, o projeto conta com 20 voluntários, que se dividem entre a condução das aulas e a preparação do almoço que é oferecido depois das práticas. Com orçamento mensal de R$ 1.200 para custear as refeições, atividades culturais e até retiros, o Yoga de Rua é mantido, com certa dificuldade, por doações diretas e assinaturas em um site de financiamento recorrente. Até o dia 19 de outubro, a arrecadação estava em 43% da meta mensal.

Mesmo com as dificuldades financeiras, a ideia cresceu e chegou a São Paulo em agosto do ano passado. Na capital paulista, as aulas acontecem às terças e quintas, às 14h, na praça da Sé e às quartas-feiras, às 10h30, na praça da República. Também são seguidas de piqueniques vegetarianos. Tudo é preparado em revezamento por dez voluntários, que também esperam colaborações, sejam financeiras ou como voluntariado.

Yoga de Rua
Professor orienta alunos em aula de ioga na praça Paris, região central do Rio (Foto: Lorena Mossa)
SITUAÇÃO DE IOGA

Apesar do nome, o Yoga de Rua é aberto a qualquer pessoa e incentiva a interação entre diferentes grupos sociais. Uma das propostas é justamente combater a discriminação de classe, como conta a voluntária e socióloga Taís Capelini, 29: “Muitas vezes a gente deixa de passar perto de um morador de rua porque tem medo. É claro que o medo tem uma função, mas até que ponto esse medo não nos aprisiona e nos coloca longe um do outro, a ponto de não conseguirmos nem olhar para esse outro? Como a gente tem visto com tanto espanto na política, há um medo que quer eliminar o outro.”

Hoje voluntária do Yoga de Rua em São Paulo, Taís teve como objeto de estudo de mestrado o Yoga na Laje, projeto que oferece aulas gratuitas na favela da Rocinha, na zona sul do Rio. Concluída a pesquisa, ela destaca a função política de projetos como esses. “É a política do miúdo, a revolução pelo afeto, a resistência pelo amor. A gente precisa aprender a apreciar o diferente e se livrar das prisões do medo”, disse.

Outro projeto parecido é o Yoga na Maré, no maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro, na zona norte da cidade. Taís entende que projetos como esses mostram que ioga vai além de olhar para si mesmo. “É um caminho que me leva até mim mesma a partir do autoconhecimento, mas também me leva ao outro”. Ou, como os participantes gostam de dizer, ali na roda não importa se você está em situação de rua ou de apartamento, todos estão em situação de ioga.

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Morador de rua e de apartamento se encontram em aula de ioga no Rio (Foto: Lorena Mossa)