Um dia de marionete com kurunta ioga
A tradição conta que um jeito diferente de praticar ioga surgiu com sábios que viviam em florestas e faziam posturas suspensos por cordas presas nas árvores. Dos troncos para as paredes, as cordas que ajudam a manipular o corpo deram origem ao estilo de ioga hoje conhecido como kurunta –que significa marionete nos teatros do sul da Índia.
Essa história foi registrada em um manuscrito descoberto pelo guru Sri Tirumalai Krishnamacharya (1888-1989) no início do século 20, mas os registros se perderam com o tempo. Mais tarde, a técnica de incluir cordas na construção de ásanas (posturas de ioga) foi desenvolvida por seu discípulo B. K. S. Iyengar (1918-2014), que ficou conhecido pelo uso de acessórios para ajudar no alinhamento das posturas.
No fim de semana passado, participei de um workshop de kurunta ioga com a professora Débora Regufe, no Rio, e vou contar como essa técnica pode ser útil na sua prática. Só não vá subir pelas paredes sozinho, sem um professor experiente para lhe orientar. Hoje em dia, muitos estúdios têm kuruntas que podem ser usados de forma segura durante as aulas.
Como a origem do nome indica, kuruntas são cordas presas em uma parede que permitem ao iogue manipular o próprio corpo como se fosse, ao mesmo tempo, marionete e marionetista. A ideia é aproveitar a tração entre o corpo, a corda e a parede e usar a força da gravidade contra ou a favor para intensificar a experiência nas posturas.
“A parede cria uma âncora. À medida que você se sente ancorado, uma das características do ásana –equilíbrio, força ou flexibilidade– pode ser amenizada e você acaba aumentando a capacidade de concentração nos outros elementos”, ensina Débora.
Isso ajuda a alcançar mais mobilidade nas articulações, precisão no alinhamento e coragem para explorar posturas antes vistas como inalcançáveis, beneficiando tanto o praticante que não consegue fazer determinado ásana no chão como aquele que consegue, mas quer intensificar seus efeitos. Também é útil para quem tem limitações como dores nos joelhos ou nos punhos, porque tira a sobrecarga das articulações.
Um exemplo é “adho mukha svanasana” (postura do cachorro olhando para baixo, na foto). “Quando você está no kurunta neste ásana, promove o deslocamento do peso para trás e diminui o peso nos braços. As pessoas que têm muito desconforto ao colocar o peso nas mãos podem se apoiar na ponta dos dedos e intensificar a ação de afundar a caixa torácica para levar o peso para o tornozelo. Quem já tem a panturrilha alongada, melhora muito seu equilíbrio”, diz a professora.
A sensação de estar suspenso pelos kuruntas é de liberdade e relaxamento, o que também facilita a respiração. Em algumas posturas, senti efeito tão intenso que a vontade era de nunca mais sair. “Os dois elementos, a corda e a parede, criam um melhor alinhamento do corpo físico, o que faz alinhar também o corpo energético. Daí a circulação de energia ser mais intensa”, explica Débora.
Entre as incontáveis posturas que podem ser beneficiadas pelas cordas, estão as invertidas (de cabeça para baixo) e as retroflexões (que curvam o corpo para trás). As primeiras porque permitem ao aluno que não está preparado para se equilibrar de ponta-cabeça aproveitar os mesmos benefícios que teria se estivesse no tapetinho, com a vantagem de descomprimir os discos intervertebrais, já que não há pressão da coluna sobre o chão.
Os kuruntas também ajudam a desenvolver as retroflexões, posturas difíceis para a maioria dos novos praticantes, porque se curvar para trás não é um movimento natural do nosso dia a dia. Quando nos inclinamos para pegar um objeto, quando nos abaixamos, quando nos sentamos, estamos sempre nos curvando para frente e o corpo fica desacostumado a fazer o movimento contrário.
Resgatar essa flexibilidade melhora a postura e traz efeitos físicos e emocionais. “Uma retroflexão como ‘bhujangasana’ (postura da cobra) vitaliza a musculatura e a própria coluna. Já emocionalmente, promove uma abertura do nosso peito [e do centro de energia conhecido como anahata chakra] e a gente fica um pouco mais corajoso. A tendência, com o passar dos anos, é fecharmos a caixa torácica para nos proteger”, afirma Débora.
Além de trazer efeitos para o corpo e para as emoções, os kuruntas também ajudam a preparar a mente para que possamos explorar o desconhecido, como explica Geeta Iyengar, filha do famoso guru, em vídeo divulgado por seus seguidores.
“Treinamos como desenvolver a coragem para conseguir liberdade. Quando falamos em liberdade do corpo, ela também está dentro de nós. Existe muita rigidez interna e as pessoas pensam que é falta de flexibilidade do corpo. Mas não é só isso. A questão é como, internamente, você amplia os seus espaços para que o corpo não se sinta preso. Com a prática, isso é possível. E kurunta ioga ajuda a quebrar as barreiras da mente quando pensamos que não podemos fazer algo.”